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- 03/11/2022
- redacao
Por muito tempo, a perspectiva das pessoas ao seu redor fez com que Kim Villanelle, 39 anos, se sentisse prisioneira dentro de si mesma. Natural do bairro Queimadinha, em Feira de Santana, foi somente depois de se tornar uma das primeiras mulheres trans a ocupar o cargo de policial militar na Bahia que Kim rompeu com as amarras sociais e se tornou destemida para, hoje, ser quem é.
“Tenho medo da falta de medo”, diz ela, que afirma se sentir capaz de enfrentar qualquer obstáculo no seu caminho. No entanto, nem sempre foi assim.
Caçula da família, a soldada passou grande parte da infância com medo. Na escola, era reconhecida como estudiosa na sala de aula, mas era alvo dos colegas no recreio. Na volta para casa, abria trilha pelos matos para evitar o caminho principal pelo qual jovens e adultos passavam disparando palavras de ódio, quando não agressões físicas.
“Me batiam pelo fato de eu ser gay. Me chamavam de travesti porque, na época, não existia o termo trans. Batiam simplesmente porque eu andava rebolando”, relata.
Seus agressores eram, na maioria, pessoas adultas e do sexo masculino. Esses fatores intimidavam Kim que, sendo ainda jovem, acreditou que seria melhor lidar com tudo aquilo sozinha. Escondeu dos pais todas as violências que sofria, de modo que cada hematoma que surgia era atribuído a uma queda de bicicleta ou um tropeço na rua. Até a marca do ferimento causado por uma faca foi ocultada pela desculpa de ter se machucado com ferro.
“Eu trago muitas marcas no corpo e na alma dessas violências que sofri. Sempre evitei que meus pais soubessem porque achava que eles não iam saber resolver, porque em casa eu não sofria nada de discriminação”, conta Kim.
A solidão causada pelos episódios de homofobia que guardava em segredo fez Kim chegar a ter vontade de morrer. Contudo, através de terapia e apoio de amigos, ela conseguiu superar ou lidar com os traumas. Em 2012, ainda trabalhava como agente comunitária e cursava Direito na Universidade Estadual de Feira de Santana (Uefs) quando seus colegas militares a incentivaram a se inscrever no concurso da PM.
Inicialmente, Kim não acreditou que conseguiria passar na prova e até deixou de se inscrever no primeiro prazo estipulado. Foi só depois de muita insistência dos colegas e da prorrogação do prazo de inscrição que decidiu tentar. Aprovada em sexto lugar, o resultado a surpreendeu, mas não mais do que o caminho que estava prestes a percorrer.
Buscando apenas ter uma melhor condição de vida, Kim chegou à corporação em 2014, ano de sua convocação, acreditando que todos os policiais poderiam ser chamados de soldados. Sem esperar, além da hierarquia, ela aprendeu mais foi sobre o significado de acolhimento.
Kim conta que depois que sua superior, a primeira comandante do sexo feminino da 64º Companhia Independente de Polícia Militar – Feira de Santana, viu suas fotos maquiadas, a postura dentro da corporação mudou. Ela não só recebeu todo o apoio da Major Lílian, como também o carinho de todos os colegas. “Posso dizer que a Polícia Militar foi o primeiro lugar que me acolheu quando eu revelei que era trans e não ia mais cortar meu cabelo”, afirma.
Para ela, o suporte foi tão significativo quanto a primeira vez em que apareceu com a boca pintada para sua mãe. “Foi natural. Minha mãe não olhava para a minha boca ou tentava desviar o olhar. Ela olhava para os meus olhos, como sempre olhou”, relembra.
Com apoio da família, dos colegas de trabalho e do marido, a policial declara que está no auge da felicidade e incentiva outras pessoas trans a não temerem. “Por experiência própria, eu digo que quando você evolui, o mundo a sua volta inevitavelmente evolui e sempre em favor de você”, afirma.
Informações: Correio-Com supervisão da subeditora Fernanda Varela*.
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