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- 13/01/2020
- redacao
Salve Nosso Senhor do Bonfim. Salve Oxalá. Não existe maneira mais apropriada para se começar este texto senão com a saudação que faz parte de mais de dois séculos de história. No próximo dia 16 de janeiro, quinta-feira que antecede o segundo domingo posterior ao Dia de Reis, milhares de baianos e turistas sobem a Colina Sagrada com um único propósito: saudar e pedir bênçãos a Senhor do Bonfim, representado pela imagem de Jesus crucificado.
A segunda maior expressão cultural de Salvador, perdendo apenas para o Carnaval, o louvor a Nosso Senhor do Bonfim remonta os anos de 1745, quando a imagem foi entregue à Basílica, na Cidade Baixa. Tudo começou com uma promessa feita em meio ao desespero de um naufrágio. Se conseguisse salvar a vida, o Capitão Teodósio Rodrigues de Faria levaria uma imagem do Santo a Salvador.
Vivo, ele cumpriu a promessa e mandou fazer uma imagem de 1,06 metros em cedro, réplica idêntica à original que fica na cidade portuguesa de Setúbal. E fez mais: pediu autorização à Santa Sé para construir uma igreja localizada numa colina. Assim teve início a tradição brasileira de culto ao Santo católico, que, para as religiões de matriz africana, é representado por Oxalá (Ketu) ou Lembra (Angola).
Sincretismo
Falar em sincretismo na Bahia se tornou corriqueiro ou, até mesmo, trivial. É preciso ter cuidado para usar a expressão. O que aconteceu no encontro do Senhor do Bonfim com Oxalá não foi a troca de um pelo outro. Um não é o outro. Tudo é mais complexo. São histórias e crenças distintas.
A crença em Oxalá vem das raízes africanas, dos escravos que eram trazidos para Salvador e encontraram na Colina Sagrada a representação mais semelhante à cultura que trouxeram de suas terras. Assim como Senhor do Bonfim, Oxalá, que é filho de Olorum, tem uma montanha – o Umbigo do Mundo – como morada. É neste momento que acontece o encontro de crenças, de santos e é quando Senhor do Bonfim se associa a Oxalá.
“Quando uma Ialorixá diz que Senhor do Bonfim não é Oxalá ela está demarcando não só no campo religioso, mas também político, a autonomia do Candomblé em relação a Igreja Católica hoje”, explicou a historiadora Wlamyra Albuquerque. Ainda segundo ela, “a lavagem do Bonfim renova a cultura popular baiana, porque continua a ser um espaço para reinventá-la. Não é uma festa do passado a se repetir, mas um festejo antigo que recriamos a cada ano”.
Festa, lavagem e intolerância
Mas, assim como a união de crenças fez da Colina Sagrada o ponto de encontro entre Senhor do Bonfim e Oxalá, a história também foi marcada por preconceito e intolerância religiosa. Com a usurpação de elementos da cultura africana, os escravos se viram obrigados a utilizarem outros nomes, dados pelos seus senhores, vestir-se de maneira distinta com a qual estavam acostumados e adaptar suas crenças ao catolicismo que reinava em Salvador.
Com a Igreja do Senhor do Bonfim e o culto ao Santo, em 1773 teve início a tradição de lavagem das escadarias, quando integrantes de uma irmandade de devotos leigos obrigaram os escravos a limparem os degraus e prepararem o local para a grande festa do Senhor do Bonfim. No entanto, já associado a Oxalá, o festejo se transformou numa expressão da cultura africana, do Candomblé.
Ao perceber que os escravos estavam cultuando seu Santo, a Arquidiocese de Salvador proibiu, em 1889, a lavagem na parte interna do templo e transferiu o ritual para as escadarias e o adro. Esse é o motivo de ainda hoje, após mais de dois séculos de tradição, as portas da Basílica permanecerem fechadas e as baianas despejarem água apenas sobre os degraus externos.
O que começou como uma barreira à expressão da cultura africana se transformou na segunda maior festa da cidade. A celebração, que integra o calendário litúrgico e o ciclo de Festas de Largo de Salvador, acontece durante onze dias do mês de janeiro, tendo início um dia após o Dia dos Santos Reis, que é celebrado em 6 de janeiro, e finalizando no segundo domingo depois da Epifania, no Dia do Senhor do Bonfim.
De acordo com Padre Edson Menezes, pároco responsável pelo templo no Bonfim, a partir da proibição, foi iniciada a tradição da lavagem das escadarias. “Após essa determinação, os devotos do Candomblé começaram a tradição do cortejo para lavar escadarias”, contou.
Na procissão, que sai da Igreja de Nossa Senhora da Conceição da Praia, no Comércio, fiéis e filhos de Santo se vestem de branco e acompanham baianas que carregam a água de cheiro e vassouras para lavar as escadarias. “Esse ato passou a ser religioso, de penitência, e agrega muitas pessoas. No contexto maior, o sentido da lavagem é religioso, independente da crença”, declarou o padre.
Fitas coloridas
As famosas fitas do Senhor do Bonfim, que estão espalhadas por pulsos de pessoas em todo o mundo, é, sem dúvida, um dos símbolos mais conhecidos da festa. De acordo com a tradição religiosa, a fita é amarrada ao pulso e, para cada nó (geralmente são três), a pessoa deve fazer um pedido, que se realiza quando o amuleto se romper.
A fita começou a ser utilizada na festa do Senhor do Bonfim em 1809, em razão da ideia do tesoureiro da devoção, Manoel Antônio da Silva Servo. A intenção dele era realizar a venda da fita para auxiliar na arrecadação de dinheiro para a devoção. Inicialmente, as fitas receberam o nome de “medidas”, eram feitas de algodão e tinha até 50 centímetros de comprimento.
Com o tempo, a fitinha colorida virou um amuleto, e sua industrialização fez com que o produto utilizado na produção mudasse, bem como o tamanho, com 63 centímetros, a medida entre a chaga do peito e a mão esquerda de Cristo. Atualmente, as fitas também representam uma forte relação com o diálogo entre as religiões, uma vez que as cores podem ter associações com orixás oriundos da matriz africana.
Hino
Apesar da popularidade dos festejos, muita gente não sabe cantar o hino do Senhor do Bonfim e há até quem sequer saiba da existência da música de autoria de Péthion de Villar e musicado pelo maestro e compositor Remígio Domenech, em 1923. No entanto, apesar deste ser o oficial, existe outro hino que é mais conhecido.
Aí, sim, é difícil encontrar quem não saiba entoar ao menos um dos versos. O hino cívico foi criado durante as comemorações do centenário da Independência da Bahia, por Arthur de Salles e João Antônio Wanderley. São dele os versos: “Glória a Ti neste dia de glória, glória a Ti, redentor, que há cem anos nossos pais conduzistes à vitória pelos mares e campos baianos…”.
A explicação para a popularidade do hino cívico existe. De acordo com o especialista em música religiosa, Pablo Sotuyo, a música é mais conhecida, porque faz referência direta à vitória do povo na luta pela Independência do Brasil na Bahia.
Quem deixou o hino cívico a Senhor do Bonfim (ainda mais) imortalizado foi o cantor e compositor Caetano Veloso, que gravou, em 1968, a canção no disco “Tropicália ou Panis et Circensis”.
Patrimônio
A Basílica de Nosso Senhor do Bonfim, localizada na Colina Sagrada, foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1938, com registro no Livro de Belas Artes.
Já em 2014, a Festa do Senhor do Bonfim recebeu o título de patrimônio cultural imaterial brasileiro, com reconhecimento pela Fundação Palmares e pelo Iphan, consolidando a festa como referência cultural da Bahia.
Todos os anos, milhares de baianos e turistas percorrem cerca de 8 quilômetros desde o Comércio até a Colina. Há quem prefira esperar o cortejo já no adro, mas a certeza é que a festa de Nosso Senhor do Bonfim é uma reunião de crenças e fé, além de ter a parte profana, quando, após as obrigações, todos se reúnem em festas espalhadas pela cidade.
Já no domingo seguinte à lavagem, os devotos se reúnem na Igreja de Nossa Senhora dos Mares, no bairro do Uruguai, para a procissão dos Três Pedidos, que percorre o largo de Roma em direção ao Bonfim. Na chegada à Colina, os fiéis dão três voltas em torno da Basílica, fazendo três pedidos. Uma pregação, bem como uma missa solene e a benção do Santíssimo Sacramento encerram os festejos.
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