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- 20/05/2018
- redacao
Em março de 1976, quando a ditadura do general Ernesto Geisel (1907-1996) chegou ao seu segundo ano, o então ministro das Relações Exteriores, Azeredo da Silveira (1917-1990), dirigiu uma carta com termos duros ao então secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger. O governo Geisel ficara furioso com a posição do representante dos EUA na comissão de direitos humanos da ONU (Organização das Nações Unidas) que, em uma sessão reservada, impediu que o Brasil se livrasse da obrigação de apresentar explicações sobre diversas denúncias de torturas e maus-tratos a prisioneiros políticos.
“Um exemplo desnecessário e desagradável de mal-entendidos que ainda permanecem entre nossos dois países foi o comportamento do sr. Leonard Garment na comissão de direitos humanos da ONU em Genebra. Eu soube que seus ataques ao Brasil estão entre os mais duros já dirigidos a quaisquer nações naquela comissão”, escreveu Silveira, lembrando que Brasil e EUA tentavam colocar em prática um memorando de entendimentos defendido por Kissinger.
Garment (1923-2013) havia sido um homem-chave na defesa do presidente Richard Nixon (1913-1994) durante a crise política deflagrada pela espionagem no edifício Watergate, que resultou na renúncia do mandatário em 1974.
Em resposta a Silveira, Kissinger mandou uma carta na qual não recuou da posição. Disse que o apoio dos EUA a um estudo sobre as denúncias de tortura “não implica um pré-julgamento de mérito pelos EUA”.
“O recente encontro [da ONU] foi, como você sabe, uma sessão fechada, e o representante dos EUA também solicitou um estudo em outro caso que foi referido pela subcomissão de direitos humanos como merecedor de mais exames”, escreveu Kissinger.
De qualquer forma, o americano pediu que sua assessoria apurasse as reclamações do Brasil. A resposta foi igualmente ruim para a ditadura. “O padrão dos EUA nesse encontro seguiu as normas do Departamento e foi baseado na nossa decisão de 1975, publicamente anunciada, de apoiar estudos em casos desse gênero que são referidos pela comissão como reveladores de violações consistentes dos direitos humanos e que são razoavelmente apoiados pelos registros.”
Em síntese, o Departamento de Estado confirmou que denúncias de abusos, maus-tratos e torturas continuavam ocorrendo mesmo sob o governo Geisel e que elas precisavam ser apuradas pela ONU.
No ano seguinte, o cenário nos EUA ficou ainda mais desfavorável para a ditadura com a eleição de Jimmy Carter, que presidiu o país de 1977 a 1981. Tendo eleito a bandeira dos direitos humanos para seu governo, Carter determinou uma mudança na política externa dos EUA no sentido de pressionar as ditaduras latino-americanas a coibirem seus desmandos e crimes.
Em junho de 1977, uma “informação de segurança nacional”, então secreta, foi produzida pela CIA para avaliar a situação dos direitos humanos no Cone Sul da América Latina.
A conclusão dos agentes secretos foi definitiva: “Os direitos humanos têm sido violados –algumas vezes flagrantemente– pelos regimes militares autoritários que chegaram ao poder no Cone Sul da América Latina. A repressão, caracterizada pela tortura e outras práticas desumanas, tem sido dirigida em grande parte à esquerda, mas outros também foram vitimizados, em grande parte pelos governos que reagiram a ameaças reais e imaginárias à estabilidade”.
A carta de Silveira, a resposta de Kissinger e o estudo da CIA são documentos cujo sigilo foi retirado pelos EUA em 2015 e integram lote de papéis pesquisados pelo professor de relações internacionais da FGV (Fundação Getulio Vargas) Matias Spektor. No último dia 10, ele fez circular um memorando da CIA de 1974 que apontou que Geisel havia assumido o controle sobre a decisão de assassinatos de adversários da ditadura.
Os novos documentos confirmam que o Brasil reagiu às pressões dos EUA para que a ditadura interrompesse crimes contra os direitos humanos. Em sua “informação” de junho de 1977, a CIA afirmou que, em retaliação às cobranças, “os brasileiros atuaram para encerrar acordos militares com os EUA” e que Brasil, Chile e Argentina “já estão procurando em outros lugares por equipamento pesado militar que eles não podem procurar nos EUA”.
“A mágoa latina sobre a posição dos EUA [contra tortura] tem se manifestado com um resfriamento nas relações e, em alguns casos, pela rejeição à ajuda americana. […] A Argentina deixou claro que a erradicação do terrorismo será levada a cabo por quaisquer meios que o governo militar entenda necessários, inclusive se isso levar a uma deterioração nas relações com os EUA”, diz o documento da CIA.
Em outro ponto, o órgão de inteligência dos EUA diz que “pressões políticas e econômicas– como suspender financiamentos ou vendas de armas já realizadas– exercidas por outros governos têm também estimulado uma mudança na situação dos direitos humanos, mas os resultados têm variado de país a país e são difíceis de serem avaliados”.
A CIA escreveu que a repressão do regime militar no Brasil havia sido “mitigada, em parte, durante o ano passado, pela ordem de afastamento, vinda do presidente Geisel, de oficiais responsáveis por prisões ilegais e tortura”. “Militares e organizações policiais aparentemente têm ordens de oficiais de alto escalão para proibir tortura e outras formas de maus-tratos. Presos em unidades de segurança têm experimentado a melhoria das condições, mas permanecem relatos ocasionais de tratamento bruto e detenções arbitrárias.”
Apesar dessa constatação, os americanos tinham informações também no sentido contrário. Em novembro de 1977, cinco meses depois da “informação”, o consulado dos EUA no Rio de Janeiro despachou um telegrama para o Departamento de Estado informando sobre a greve de fome entre presos políticos e suas conversas com um defensor dos presos, o advogado Heleno Fragoso (1926-1985).
O criminalista relatou ter recebido diversas informações sobre torturas e maus-tratos. O consulado foi atrás das informações e disse que elas “são provavelmente verdadeiras, embora possivelmente submetidas a algum exagero”.
O consulado disse ter chegado a essa conclusão porque, entre outros pontos, “o advogado Fragoso não gostaria de ser individualmente associado a acusações tresloucadas, e a violência contra prisioneiros, particularmente criminosos comuns, é disseminada”.
Outras ditaduras em questão no Cone Sul
Argentina (1976-1983)
Ditadura comandada por juntas militares é apontada como responsável por 30 mil mortes e desaparecimentos, segundo ativistas; governo fala em cerca de 8.000
Chile (1973-1990)
Sob o comando de Pinochet, que derrubou o governo de Salvador Allende, regime deixou oficialmente cerca de 3.200 mortos e desaparecidos
( Por: Folhapress)
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