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- 01/04/2018
- redacao
No dia 19 de agosto de 1966, médicos da maternidade Tsylla Balbino, na Baixa de Quintas, acreditavam estar realizando uma cesariana como outra qualquer. Estavam enganados.
– Será que a bebê está morta?
A mãe apenas pensou em fazer a pergunta. Intuiu algum problema. A equipe médica percebeu a ansiedade e tentou lhe acalmar:
– Calma! A bebê não está morta!
Mas, o que havia de errado? Porque não a deixavam ver sua filha? Depois de cinco noites no hospital, não se conteve. Na madrugada, invadiu o berçário e encontrou a menina. Deu um grito! Naquele berço de hospital, estava Glady Maria da Silva, hoje com 51 anos. Além de algumas más formações, tinha parte do corpo imobilizado. Bem na hora do nascimento, havia sofrido as duas primeiras fraturas entre as mais de uma centena que teria na vida.
Glady nasceu com Osteogênese imperfeita, popularmente conhecida por doença dos ossos de vidro. Sua principal característica é a fragilidade dos ossos, que se quebram com enorme facilidade. Os exames de ultrassom da época não apontavam qualquer imperfeição no feto. Até que, às 10h40 de uma quinta-feira, Glady veio ao mundo. Um susto para a equipe médica e para a família. O que seguiria dali para frente seria uma vida de limitações, desafios e dores, muitas dores.
Corta para a noite de 24 de janeiro de 2013. Carregada pelo irmão, Glady é convocada pela reitora da Faculdade Social da Bahia (FSBA). Naquele evento, receberia o diploma do curso de Psicologia. Como pode? A mulher que sequer conseguia se locomover, que tem escolioses graves, ossos curvados, deformidades na coluna cervical e na caixa torácica, além de complicações pulmonares e cardíacas por conta de sua condição, estava habilitada a aconselhar os outros sobre seus problemas.
Glady é uma gigante de cristal. De cristal inquebrável, como em Unbreakable, filme estrelado por Bruce Willis e Samuel L. Jackson. Este último vive um personagem portador da mesma doença de Glady. Já Willis, é o seu oposto: com superpoderes, se tornou inquebrável ou, em inglês, unbreakable. Glady, pode-se dizer, é a mistura de ambos. Nasceu frágil, mas, dia a dia parece ter ganhado superpoderes. Tanto que, desde a formatura, sonhava em abrir o seu próprio consultório. Pós graduou-se na área cognitiva comportamental.
Desde janeiro deste ano, enquanto realiza a sua segunda pós (em teoria da Gestalt), tem uma sala de atendimento que, por enquanto, utiliza apenas no sábado. No momento, tem quatro pacientes fixos, além dos que visita em domicílio. “Já consigo pagar a sala e o Uber que me transporta todos os dias”, explica. “Só de chegar aqui e olhar para Glady minha depressão vai embora na hora. Ultimamente, vinha sentindo uma tristeza estranha. Com esse trabalho de Glady melhorei muito”, disse Maria de Lourdes Barbosa, 51 anos, uma das pacientes.
“A gente tem que saber trabalhar com a realidade da gente. ‘A realidade que eu tenho é essa! O que eu vou fazer com ela?’. A gente precisa aprender a ressignificar a realidade para que ela seja menos dolorosa”, ensina Glady.
Ela fala não sobre si mesma e sua realidade, mas sobre as limitações dos seus pacientes. “Uma paciente minha está com um grau de depressão que não quer nem sair do quarto. Tem gente que não consegue segurar os problemas da vida”.
Livro
Difícil é a vida segurar Glady. Nossa pequena gigante não tem limites. Nos últimos anos, escreveu uma autobriografia. A história de sua vida, desde aquele nascimento dramático, está prontinha para ser publicada. Busca apoio de editoras e patrocínio para poder divulgar sua trajetória de superação. Um dos momentos mais emocionantes do livro, claro, é o dia de sua formatura.
Em 2007, sem que a família soubesse, Glady fez vestibular para Psicologia. “Eu disse a minha mãe que ia na casa de uma amiga e na verdade fui fazer a prova”, lembra. Belo dia, uma amiga que trabalhava na instituição de ensino ligou. A própria mãe de Glady atendeu. “Dona Maria, Glady passou no vestibular!”. “Que vestibular?”, respondeu, surpresa, Maria Anunciação da Silva, hoje com 81 anos.
Diferente do que algumas pessoas possam imaginar, Glady nunca teve posses. Moradora de Itacaranha, no Subúrbio Ferroviário, custeou as três primeiras parcelas da Faculdade sozinha e depois conseguiu bolsa total. Se virou para pagar as mensalidades dando banca de matemática, português, ciências e história. “Eu dava banca nos outros dois turnos”. Lutou para não perder aulas no período da faculdade, que fica longe, em Ondina. “Ia de ônibus. Na saída, quase 23h, pegava o último buzu”.
nfância
Desde que se entende por gente, Glady vê pessoas apontar o dedo para ela ou cochichar baixinho sobre sua condição. Sempre aconteceu e acontece até hoje. Muitas vezes, evitam o contato. “O povo parece que tá vendo algo de outro planeta. Dão risada, apontam”. Mas, isso também foi superado.
“Hoje não me atinge em nada. Tô nem aí! Quem paga minhas contas sou eu. Trabalho pra isso!”.
Antes, não se aceitava. Com uma mãe superprotetora, só foi sair de casa pela primeira vez sem a mãe com 12 anos. “Só saía com ela. Era de casa para a escola e da escola para casa”. Claro, sofreu bulling dos colegas. “Na hora da merenda pegavam meu lanche e saiam correndo. Mas, tinha aqueles que me ajudavam também”. Mas nada impediu que dali surgisse uma personalidade expansiva, vaiorosa, extrovertida e cheia de estima.
Tanto que veio a adolescência e, em vez de se retrair em seu mundo diminuto, Glady se soltou mais. No ensino médio, no Colégio Clériston Andrade, teve o seu primeiro paquera. “Ficamos juntos um ano e meio escondidos de minha mãe. Ela nunca aceitou e não aceita até hoje”, ri Glady. Depois da formatura, terminaram o relacionamento. O fato é que Glady nunca deixou de tentar viver uma vida normal. Até hoje, frequenta praias, festas e não perde um Carnaval. Sua maior luta sempre foi arrumar um emprego. A cada tentativa, se despedaçava por dentro.
“Uma vez enviei currículo para uma agência de emprego e fui selecionada. Fiz a entrevista e, no final das contas, o RH me dispensou sem muitas explicações. Saí arrasada. Voltei chorando dentro do taxi. Como exclui alguém assim?”. Hoje, Glady é pura alegria. “Hoje sou uma mulher que pago minhas contas, cuido da minha casa e lavo meus pratos”. Só perde o bom humor quando enfrenta as dificuldades das ruas. “Falta muita estrutura. Costumo dizer que deficiente é o mundo. Deficiente é quem exclui as pessoas”.
A doença
“A primeira coisa é suportar a dor”, afirma Glady, questionada sobre o que faz quando um dos seus ossos se quebra. “Dor de fratura só sabe quem sente. E você ainda fica dois ou três meses imobilizado”, explica Glady. Ela calcula já ter sofrido mais de cem fraturas pelo corpo, algumas delas involuntárias. Foram principalmente as fraturas que deixaram seus membros superiores e inferiores, além de tórax, com deformações.
“Quando um osso se quebra, por mais que ele seja colocado no lugar, nunca volta ao normal. Agora, imagine mais de cem fraturas, alguma delas no mesmo osso”. As fraturas ocorrem desde o nascimento. “Devo ter sentido muita dor quando bebê, mas não me lembro. Só tive noção disso quando fui amadurecendo”.
O caso de superação de Glady surpreendeu o ortopedista Marcos Lopes, da clínica Ortopet, especialista em colunas. “Fantástico! Uma heroína!”. A Osteogênese imperfeita ou doença dos ossos de vidro (ou ainda doença dos ossos de cristal) é causada por uma alteração genética hereditária que acomete as fibras do colágeno tipo 1, explica Marcos Lopes. “As fibras do colágeno são a proteína que sustenta os ossos. Os ossos nascem frágeis”, confirma o ortopedista.
A Osteogênese imperfeita atinge uma pessoa a cada 20 mil no mundo e tem diversos graus. A de Glady é grau 4, um dos mais graves. “Normalmente têm deformação óssea, problemas auditivos, baixa estatura, ossos frágeis e defeitos nos dentes”, lista o médico. A maior parte da população acometida pela doença tem grau 1, o mais brando. O grau mais complicado é o 2. Em alguns casos, o feto não resiste às fraturas e morre no útero. “Há fraturas de crânio e costelas”.
Hoje, existem tratamentos à base de vitamina D, cálcio e alendronato, que favorecem à reconstituição dos ossos. Mas ele deve ser ministrado quando o paciente ainda está em fase de crescimento. É antes da puberdade, inclusive, que ocorrem mais fraturas. “Quando chega a puberdade, melhora”, diz o médico. “Não tive acesso aos medicamentos que existem hoje para calcificação óssea. Comi muita casca de ovo triturada e muito leite Despois que os ossos se desenvolveram não adianta mais”, afirma Glady.
O diagnóstico da Osteogênese é basicamente feito por exame clínico. “Muitos colegas acham que a criança está sofrendo maus tratos e não chegam ao diagnóstico com rapidez”. Doença rara e hereditária, com gene dominante, uma pessoa saudável tem 50% de chances de ter um filho com a doença caso tenha herdeiros com uma pessoa acometida pela Osteogênese imperfeita.
Consultas com Glady:
Dia: todos os sábados
Contato: 98606-3819
Preço: o valor é negociado diretamente com a profissional
(Fonte: Correio)
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