PALIATIVO II ( Por: Dr. Hugo Henrique (*)
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  • 15/03/2022 
  • redacao

Alguns dias se passaram e eu não vi mais aquele homem. Às vezes ele aparecia acompanhado da cuidadora no hospital e eu o ajudava principalmente no controle da dor.

Já não conseguia mais engolir e falava pouco. O tumor crescia tomando sua garganta e por debaixo da língua. Foi necessário uma sonda que atravessa a pele e vai direto ao estômago. Era por ela que a cuidadora o alimentava e injetava triturados, os inúmeros remédios…

Ele disse que estava se tratando e a gente conversava sobre a vida e às vezes, sobre a morte também.

Em alguns momentos era necessário ser uma espécie de ouvinte das derradeiras duvidas que todos temos ou teremos um dia…

Como seria morrer? Como é saber que vai morrer? Arrependimentos? Coisas para fazer? Contas a acertar, perdões, “eu te amos…”

No final das contas só me dizia que queria que Deus tirasse aquela dor dele que sufocava até a morfina.

Não mais o vi por um bom tempo.

Um dia fui chamado fazer um atendimento a domicilio.

Ele passou a ser novamente meu paciente. Eram pele e osso que gemiam com pus escorrendo pela boca imóvel entreaberta.

Ferimentos apodrecidos nas nádegas e ao redor da sonda enterrada num buraco aberto que mostrava o próprio estômago.
De lá drenava uma secreção vermelho-escura fétida e muitas moscas pousavam sobre ele. Não mais falava e seu olhar triste, sofrido suplicavam a passagem que ao se enforcar com o lençol ele tentara abreviar.

Pediu-me uma medicação que acabasse com aquele sofrimento de uma vez.

Pediu para falar comigo a sós. Trêmulo, enfraquecido ele sustentava as mãos no ar com dificuldade e a levava ao rosto. Eu segurava as lagrimas e tentava decifrar os gestos que fazia.

Eu não queria entender, mas entendi algo perturbador.

Ele balbuciou ter levado dois tapas no rosto… Quem agrediu aquele ser humano? Revolta? Delírio?

Não sei, mas saber daquilo doía muito.

Ele morreu essa semana após se reconciliar com a mãe.

Inexplicavelmente quem viu disse que após receber seu perdão, seus olhos brilharam tranqüilos… Todo mau cheiro e as moscas sumiram no quarto e sereno ele descansou

(*)-Dr. Hugo Henrqiue R. de Almeida, Clinico Geral, formado pela UESX-Universidade Estadual de Santa Cruz